domingo, setembro 05, 2010

em desespero de causa

ao longe, no fim do corredor, apenas se via a cabeça com cabelo farto, forte e escuro entremeado de branco eriçado, em desalinho como juba de leão velho, mal tratado e seco. aproximei-me mais e as sobrancelhas espessas, saltavam espetadas, onde alguns pelos picavam em martírio as pálpebras. uma suja poeira incrustada em torno dos olhos fechados de um negro prestes a explodir numa pele sebosa e suada eram o pó-de-arroz de uma testa e nariz marcado por rugas vincadas, e depois... mais cabelo, bigode farto, mento escuro, boca e alguns dentes escuros de podre.

embrulhada, numa bata do hospital de atilhos gastos, como um chouriço, aguardava à porta do bloco, onde o corpo evidentemente maior que a maca que lhe coube em sorte, estava encravado e protegido para seu bem, entre as grades. one size fits all, tamanho único, espartilho castigador, tormento para os doentes quando se mexem e penoso para os prestadores, seus carrascos quando os cuidam. um lençol e cobertor recobertos por uma colcha branca kitsch tornavam-na mais apresentável ao longe. os braços esticados, espásticos, firmes ao longo do corpo sob o qual passavam em desalinho de novelo desfeito e entre as camadas do aconchego hospitalar os tubos e torneiras do soro, não funcionante, adornando o pacote para operar. as mãos deformadas, unhas curtas, rentes e escuras.

aproximei-me e antes de lhe tocar, saudei-a. não reagiu. voltei, insisti e repeti mais alto. abriu os olhos e um olho branco opaco, amaurose certa, surpreendeu-me. o outro fitava o infinito. "sou muito surda" disse, "tem de falar mais alto". aproximei-me. suor acido, hálito ligeiro a jejum prolongado, pele húmida, macerada, não ouvia mesmo mais alto, nem mais perto. desisti e resumindo disse-lhe "vai ser operada. tratar da perna". "seja como deus quiser" respondeu. resmunguei comigo e sozinho. mais uma vez a mesma historia.

com esta frase e a sua fraca audição toda a comunicação é um grande vazio, tão grande como a minha tristeza. incompreensão, frustração, impotência plena e revolta (muita,...) pela perda da dignidade, pela aceitação do destino, sem luta, sem exigir, sem perguntas, sem reclamar. procuro então concentrar os meus esforços em explorar mais algumas pistas que me ajudem a tornar irrepreensível o meu ato terapêutico. preocupei-me com a sua dignidade e a sua privacidade, o local permitia isso e avancei para o tórax e depois para o abdómen. descasco mais uma camada da cebola hospitalar, a custo, com algum gemido, condescendendo ao meu gesto e facilitando-me o que procuro. descubro a barriga e vem com fralda, cheiro intenso a urina esquecida e velha.

resmungo comigo, sozinho porque não aceito. não há inocentes. somos responsáveis pelas opções que tomamos ao longo da vida e pela nossa condição atual. a demência seria implacável desligando-a do presente e realidade. não seria capaz de evocar o seu deus, de articular frases sobre a sua sorte, o seu destino, de me pedir para falar mais alto, de me explicar que não ouve. a velha egoísta recusa-se a participar, de me dizer se está medicada, se sofre do coração, se tem o sangue espesso ou uma pilha no coração. a estas perguntas obtinha gemidos de preguiça e de desinteresse. decidiu deixar tudo na mão do sobrenatural. nada era útil no concreto da sua doença aguda e consciente negligenciava a sua própria salvação. terminei a minha observação e sugeri “vou fazer uma pica nas costas”. desconversava quando lhe perguntava sobre a sua vontade. parecia não ser mais o momento da sua vontade. agora já não era ela, apenas se limitava a evocar o seu deus. por isso me ignorava, desconversava. esta violência psicológica “o doutor é que sabe” era a sublime declaração de uma indiferença total. senti-me posto de parte e excluído. tinha chegado tarde demais. tudo aquilo fazia parte do plano já há muito negociado entre ela e deus. por isso a única resposta possível só poderia ser "seja como deus quiser". sentia o sabor amargo de ter sido convocado e sem opção, tornar-me o executor deste destino planeado à minha revelia e não assumido.

de revolta e raiva, resmunguei ainda mais veementemente … “pois sou. é isso mesmo. eu é que sei. e vai ser como eu quero”. a loucura cegava-me. como podia aquela velhaca ignorante e burra ser egoísta e de me magoar assim, tornando-me instrumento e intermediário do seu destino. porra! as coisas não tinham de ser assim, estava ao seu alcance torna-las diferentes. para que me pedia para lhe falar mais alto, se afinal estava tudo já decidido à vontade de deus? como pode delegar tudo nas mãos de uma abstração? como pôde aceitar ficar refém numa armadilha cultural onde ela própria se mutila? porra! como pode aceitar isto sem condição? como não questiona? porque não exige aquilo que quer? “que burra, que raiva, que nojo isto me mete”. e afinal? o consentimento, a dignidade, a autonomia,... porra! que egoísta! que velhaca! qual destino, qual tretas! este é o verdadeiro inferno. o inferno na terra.

os seus 93 anos não eram uma felicidade para quem se aproximava deste corpo abandonado. os seus olhos continuavam perdidos na luz branca do bloco operatório do velho hospital onde, há sete dias, tinha dado entrada. foi sorte uma vizinha, ter notando falta dela há já quase dois dias. tão faladora, sempre na sua janela da casa térrea do bairro, onde habita quase à porta do mercado. foi encontrada estendida no chão de sua casa, já sem forças e sem conseguir mexer-se. queixava-se muito, gemia e não se deixava tocar. por isso os bombeiros a trouxeram. afinal tinha uma fratura.

preenchida a papelada, arrumou-se na enfermaria. intermitentemente ficava em jejum ate ter vaga para ser operada. coisa urgente claro, que fraturas nestas idades são muito perigosas, todos sabem. mas haviam muitos iguais a ela, alguns há já mais de 15 dias. todos na mesma penitencia. a cada dia definhava, ficava mais seca e mais fraca. a língua formava lixa, os olhos afundavam-se, os braços elevavam-se tremendo lentamente e com as mãos agarrava nada.

a pouco e pouco a felicidade que sentiu por ter sido encontrada caída, ia-se apagando e com o passar do tempo (horas ou seriam dias?) não se lembrava mais do que tinha de fazer, de onde estava afinal. olhava em volta e perdeu os seus retratos, o relógio da parede tinha-se tornado invisível, tudo era branco, a sua telefonia estava sem som e agora ouvia todo o dia e toda a noite vozes, berros, risos, sons estranhos e estremecia. queria virar a cabeça e ver de onde vinham estes barulhos mas doía o pescoço, as costas ardiam, as formigas subiam pelas pernas e ferravam, os dedos serrados... sentia solavancos e o corpo tremer, por vezes. faltava-lhe o ar, estava quente, muito quente, sentia sede....cansada desta guerra sem descanso, adormeceu.

finalmente foi decretado o fim dos dias de penitencia, mas julgo que não notou. a cama abanou mais no transporte para o bloco operatório e os gemidos aumentaram. todos estavam concentrados naquele papel. era mais uma cama que traziam ao bloco. e o gemido dos velhos era sempre assim. calou-se quando a cama parou. muito diferente da janela da sua casa, onde passava as manhas a cumprimentar todos os que por lá passavam, no hospital ela tinha-se tornado invisível. passaram-se papeis. os olhos presos lá longe. de súbito sentiu a cabeça desamparada cair no vazio e gritou de susto. a almofada tinha de regressar, não podia ficar com ela, porque era da enfermaria e estavam contadas. foi transferida a braços para a mesa ortopédica. era um ritual mecanizado “é só um bocadinho”, berravam todos segundos antes do puxão, porque quanto mais rápido, menos dói. uivos de dor e berros ”não se agarre aí. tem de ter calma. já esta. portou-se muito bem”. lábios cerrados, finos e rugas ainda mais vincadas, não eram sinal de alivio ou calma. Ainda ficou assim alguns minutos. sem saber, ficou arrumada e tapada por um biombo que lhe protegia a privacidade, enquanto ainda terminava a cirurgia na sala que lhe destinaram.

depois da picada nas costas, as dores que a martirizaram desapareceram magicamente. agora podíamos transporta-la para onde quiséssemos porque estava sossegada. para ela, foi nessa altura que a sua perna ficou tratada. aguentou solenemente o posicionamento que determinamos, dormitou e fechou os olhos tranquila. a perna foi operada.

quando acabou, lá lhe dissemos baixinho ao ouvido que a perna estava tratada. sorriu e agradeceu. afinal era apenas surda quando lhe gritavam. o seu sorriso dava-lhe um ar tranquilo. aquele que nunca mostrara desde que teve o safado acidente. no caminho para a sala do recobro acenava a todos e agradecia. o sorriso nunca fora tão expressivo. os enfermeiros que a acolheram puseram-na confortável e aquecida, ficou vigiada também com toda a maquinaria tecnológica com fios de todas as cores e monitor digital.

ao longe, já com outro doente ouvi, um som agudo, fininho e continuo do monitor. era a margarida. mas ela não se incomodou, continuou a dormir sorrindo.

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